sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Projeto ENCODE resgata a dignidade do nosso genoma


Posted: 13 Sep 2012 06:01 AM PDT

Na semana passada o projeto ENCODE, que envolveu mais de 400 cientistas de 32 laboratórios, anunciou com grande alarde que o DNA do nosso genoma – chamado “lixo”(do inglês junk DNA) – era funcional. O termo ENCODE vem do inglês “encyclopedia of coding elements (enciclopédia de elementos codificadores). Será que em português será chamado de ENDECO? Enciclopédia de elementos codificadores? Será que o conceito de gene não terá que ser revisto? Qual é o impacto desse projeto?

O anúncio não é surpresa
Para nós geneticistas, que trabalhamos com doenças genéticas, descobrir que as mutações ou erros genéticos nos nossos genes frequentemente não são determinísticos e que o DNA que era chamado injustamente de lixo (junk DNA) tem de fato um papel importante não foi surpresa. A denominação DNA lixo é que tem que ir para o lixo. Definitivamente. Desde o fim da década de 80, quando começamos a identificar as mutações que causam doenças genéticas, observamos que pessoas portadoras do mesmo erro genético podiam ter quadros clínicos completamente diferentes. A explicação não podia estar nos genes. Entender a variabilidade que está por trás disso tem sido um dos principais focos das nossas pesquisas no Centro do Genoma Humano. Já publicamos vários trabalhos a respeito.

Irmãos e parentes discordantes
Um dos grandes desafios é entender como pessoas portadoras da mesma mutação – muitas vezes irmãos – podem ter quadros clínicos diferentes ou discordantes. Essa pergunta vem nos perseguindo desde a década de 80, quando começamos a identificar mutações que causavam doenças genéticas. Os exemplos são inúmeros. Lembro-me de uma família com vários irmãos afetados por uma forma de distrofia muscular, que causa a degeneração progressiva dos músculos e uma fraqueza crescente. Conseguimos descobrir qual era a mutação que causava o problema naquela irmandade. Mas enquanto uma das  irmãs mais novas havia perdido a capacidade para andar aos 20 anos e dependia de uma cadeira de rodas para se locomover, a irmã mais velha conseguia andar  independentemente depois dos 50. Segundo ela, isso explicava-se por sua fé e orações.
Outro exemplo que me marcou era de uma familia com vários afetados por uma outra forma de distrofia muscular. Para descobrir qual era a mutação coletamos sangue de todos os familiares. Como alguns moravam no Nordeste, combinamos que iriam nos mandar o sangue e viriam para a consulta após termos o resultado. Depois de algumas semanas conseguimos identificar qual era o gene responsável por aquela patologia. Todos os afetados tinham uma mesma mutação em um gene que já havia sido descrito como responsável pela degeneração muscular. Encontramos a mesma mutação em dois dos parentes que viviam no Nordeste e como combinado os convocamos para uma consulta já com o relatório pronto descrevendo o resultado do exame genético.
Teriam finalmente a explicação para a sua fraqueza muscular, pensei. Entretanto, qual foi a nossa surpresa ao ver que os dois, com mais de 40 anos, eram fortes e saudáveis. Jogavam futebol, conseguiam correr e pular sem nenhuma dificuldade. Contaram-nos que haviam fornecido  amostras de sangue para colaborar com a pesquisa, para ajudar os parentes afetados. Escondi o relatório em uma gaveta, envergonhada. Era mais uma prova de que muita coisa poderia acontecer no nosso genoma muito além dos genes. Como explicar que pessoas com a mesma mutação podiam ter quadros tão diferentes? Era uma pergunta que nos perseguia muito antes do início do Projeto Genoma Humano.

Em 1990 foi iniciado o projeto GENOMA HUMANO
Ele tinha como objetivo, identificar até 2005 todos os genes responsáveis por nossas características hereditárias. Será que ele nos forneceria as respostas para essas questões ? As apostas eram que tínhamos entre 100.000  a 150.000 genes. Surpreendentemente, em 2003, dois anos antes do esperado, foi anunciado o término do Projeto Genoma Humano. Mas logo começaram as decepções. Ao invés dos anunciados 100 a 150.000 genes descobrimos que só tinhamos pouco mais de 20.000, quase o mesmo número que de um vermezinho chamadoC.elegans que mede  apenas 1 milímetro. E mais recentemente descobrimos que perdemos até do tomate que tem mais de 30.000 genes. Menos que um simples tomate! Era óbvio que nosso genoma, com toda a complexidade do ser humano, não podia ser explicada por esses 21.000 genes, que representam só 2% do nosso genoma. Qual é o papel dos  outros 98%? Não podia ser um DNA sem função. A natureza é mais sábia do que isso. Repito. Como explicar a discordância clínica em pessoas portadoras da mesma mutação supostamente patogênica? Se já desconfiávamos que muitas das informações responsáveis pela enorme complexidade do ser humano não estariam nos genes, mas no imenso “deserto” entre eles, agora tínhamos a certeza.

Em setembro de 2003 foi iniciado o projeto ENCODE
Esse projeto, uma continuação do projeto GENOMA HUMANO e que acaba de ser anunciado, confirma as nossas suspeitas. Sempre defendi que esse DNA que está entre os genes é um material genético muito importante. Não podíamos classificá-lo como lixo só porque sua função não era ainda conhecida. Os cientistas acreditam que 80% do nosso genoma tem atividade, tem alguma função. Mas isso é só um começo. De acordo com Ewan Birney, um biologista computacional do Reino Unido que participou do projeto, isso que acaba de ser anunciado talvez seja só 10% do que ainda resta descobrir. Acredito que ele poderá revolucionar não só nossos conhecimentos sobre o funcionamento do nosso genoma, mas também o tratamento de inúmeras doenças genéticas. Será que o projeto ENCODE vai nos dar novas pistas para descobrir finalmente  por que pessoas portadoras da mesma mutação, muitas vezes da mesma família, podem ter quadros muito discordantes?
Por Mayana Zatz

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