quinta-feira, 22 de março de 2012

Ciência que sente e pinta as unhas



Entrevista com a Mayana Zatz: luta pelas pesquisas com células-tronco

Por Luciane CrippaSão Paulo
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Mayana Zatz (Foto: Bob Paulino)Mayana Zatz (Foto: Bob Paulino)
Mayana Zatz é uma cientista diferente. Logo no início da carreira, durante o mestrado em Genética realizado na Universidade de São Paulo (USP), ela saiu de trás das bancadas do laboratório para dar aconselhamento genético a famílias com filhos portadores de distrofia muscular. Anos depois, ao retornar de seu pós-doutorado em Genética Humana e Médica desenvolvido na Universidade da Califórnia, ela fundou, em 1981, a ONG Associação Brasileira de Distrofia Muscular, que atende, atualmente, 120 pacientes. Para a pesquisadora, o principal resultado desse trabalho foi o aumento da expectativa de vida dos indivíduos atendidos – e ela espera que esses dez anos a mais de vida sejam o tempo necessário para descobrir a cura, pois doentes afetados pela Distrofia Muscular de Duchenne – doença humana hereditária que afeta apenas meninos e causa a destruição das fibras musculares, levando à paralisia e eventualmente à morte – dificilmente sobreviviam aos 20 anos de idade. “Percebi que não podia ser só cientista, tinha que ajudar de outra maneira”, explica a bióloga, nascida em Israel e que morou na França até os sete anos de idade.
O lado “só cientista”, no entanto, é conhecido, e reconhecido, Brasil afora. Em 2005, Mayana encampou a luta pela regularização de pesquisas com células-tronco no Brasil. “Mais do que aquela briga toda, o melhor que ficou dessa história foi permitir que o cientista conversasse com a população”, lembra.
Pró-Reitora de Pesquisas da USP e professora de Genética do Instituto de Biociências da universidade, Coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e do Instituto Nacional de Células-Tronco em Doenças Genéticas, Mayana publicou mais de 300 trabalhos científicos citados aproximadamente cinco mil vezes e é uma das maiores especialistas em células-tronco do país. Foi também a primeira brasileira a receber o Prêmio L'Oréal-Unesco para Mulheres na Ciência.
Globo Universidade - A senhora foi pioneira no estudo da correlação entre genes e os tipos diferentes de distrofias musculares. Quais foram as principais dificuldades relacionadas com o começo desses estudos no Brasil?
Mayana Zatz -
 Comecei a trabalhar com distrofias musculares ainda no mestrado e no doutorado, mas, na época, não existiam as tecnologias atuais de biologia molecular – na década de 1980 é que os testes moleculares começaram a ser desenvolvidos no exterior. Uma aluna minha do pós-doutorado, Maria Rita dos Santos e Passos-Bueno, foi para Inglaterra estudar e trouxe a tecnologia. Além disso, outra aluna, a doutora Mariz Vainzof, foi ao Canadá estudar proteínas musculares. Com isso, montamos a equipe de trabalho na Universidade de São Paulo, o embrião do Centro de Estudos do Genoma Humano, e começamos a trabalhar as correlações genótipo-fenótipo. A partir desses conhecimentos, começamos a identificar os genes que causavam as distrofias e descobrimos vários genes novos, bem como novas mutações. Isso ajuda a entender como os genes funcionam e o que acontece quando causam doenças.
GU - O que vocês já descobriram desde então?
MZ -
 Uma das grandes descobertas é que havia mais não-correlações do que correlações entre os genes. Identificamos que uma mutação que causava uma distrofia grave em uma pessoa, em outra, às vezes até da mesma família, podia não causar nada. Atualmente, nosso foco é entender porque uma pessoa sofre os efeitos, e outra não. Por aí, teremos caminhos muito importantes para futuros tratamentos.
GU - No Centro de Estudos do Genoma Humano vocês pesquisam o uso de células-troncos originárias do cordão umbilical, do tecido adiposo e da polpa dentária, com intuito de verificar o potencial de transformação delas em outros tecidos. Quais têm sido os resultados dessas pesquisas?
MZ -
 Estamos comparando o potencial dessas células-tronco se diferenciarem em músculos. Os cientistas usam o que chamo de “lixos biológicos”, como dente de leite, sangue menstrual e trompas retiradas em cirurgia, além do cordão umbilical e do tecido adiposo. No atual estágio dos estudos, as células estão sendo testadas em camundongos com distrofia muscular. Vamos comparar esses três tipos de células-troncos ao mesmo tempo, além de acompanhar o desenvolvimento dos bichos por, pelo menos, um ano. Por ora, o melhor resultado foi com tecido adiposo, que não foi rejeitado, se transformou em células musculares e fez com que os camundongos melhorassem.
GU - Em quanto tempo as células-troncos poderão ser usadas como tratamento?
MZ -
 É difícil dar uma perspectiva de tempo. Talvez, a partir dos resultados, seja possível começar a tratar antes de entender todo o mecanismo que está por trás. Isso, em outros tempos, já aconteceu com os transplantes e com drogas, como o lítio, para tratar a depressão.
GU - Vocês também desenvolvem pesquisas com células-tronco embrionárias?
MZ - 
Todas as linhagens de células-tronco embrionárias feitas nos Estados Unidos foram cultivadas em pele de camundongo ou em outros produtos animais. Queremos cultivá-las sem componente animal para poder usar em humanos. Nossas linhas de pesquisa estão mais interessadas em obter células-troncos embrionárias de pacientes que têm doenças genéticas. Se conseguirmos essas linhagens, posso entender, por exemplo, porque dois pacientes que têm a mesma mutação têm quadros diferentes no que diz respeito ao desenvolvimento da doença. E hoje também existe uma tecnologia chamada IPS, com a qual você pode reprogramar uma célula adulta, como uma célula da pele, para que se torne embrionária.
GU - A primeira linhagem de células-tronco embrionárias humanas foi isolada em 1998, nos Estados Unidos. A Lei de Biossegurança no Brasil, que permite o uso dessas células, é de 2005, e ainda com ressalvas. O que os pesquisadores perderam com esse hiato de sete anos?
MZ - 
Quando conseguimos aprovar a pesquisa com células-tronco embrionárias, a clonagem terapêutica não foi permitida, que é o método que permitiu a clonagem da ovelha Dolly, por exemplo. Trata-se de implantar o código genético adulto que está no núcleo da célula em um óvulo que, em laboratório, se comporta como uma célula-tronco embrionária. Quando propusemos a aprovação dessas pesquisas relacionadas à clonagem terapêutica, os grupos religiosos foram contra, dizendo que isso abriria caminho para a clonagem reprodutiva. Eu sempre defendi que não, pelo fato de que o processo de extrair e obter óvulos humanos é difícil e pode ser controlado. Quando em 2008 a discussão voltou ao Supremo Tribunal Federal, os japoneses já tinham descoberto as células IPS (células-tronco pluripotentes induzidas). Os mesmos grupos que foram contra a clonagem terapêutica foram a favor das células-tronco pluripotentes induzidas, que em tese são capazes, como as células-tronco embrionárias, de gerar qualquer tipo de célula e de tecido de um organismo.
Mayana Zatz (Foto: Bob Paulino)Mayana Zatz (Foto: Bob Paulino)
GU - Em julho, cientistas chineses publicaram estudos em que células IPS de camundongos geraram um animal clonado e fértil. A diferença da pesquisa chinesa, do que vinha sendo feito até então, é que não utilizou óvulos. Essa tecnologia dos chineses pode, no futuro, permitir a clonagem de um ser humano de uma maneira mais fácil?
MZ -
 Sim, você levantou um ponto muito importante. É possível usar essa técnica para fazer clonagem reprodutiva de modo muito mais fácil do que quando necessita de óvulos. Isso hoje está acessível a qualquer um que domine a tecnologia e que pode implantar as células para o embrião se desenvolver em qualquer útero, como o de uma vaca ou uma coelha. A opinião pública precisa se envolver nessa discussão. Os japoneses já se deram conta do que pode acontecer e enviaram um memorando para todos os grupos de pesquisa do país, dizendo que está proibido tentar a clonagem reprodutiva por esse processo.
GU - Em 2003, foi anunciado o sequenciamento do genoma humano, 13 anos depois de seu início. Quais são os desafios atuais no entendimento dos mecanismos do genoma humano?
MZ -
 Falta entender a interação entre esses genes e entre eles e o ambiente. Além disso, existem inúmeros processos, denominados epigenéticos, que regulam o funcionamento dos genes, e que são pouco conhecidos. A estimativa é de que, nos próximos 10 anos, qualquer um possa sequenciar o genoma por mil dólares. Isso vai gerar uma quantidade fantástica de informação, mas com muito pouco conhecimento. As pessoas vão achar várias mutações que não saberemos interpretar. Por conta disso, o Centro de Estudos do Genoma Humano pretende montar um banco de DNA de pessoas com mais de 80 anos e saudáveis. No momento em que as pessoas estiverem sequenciando seus genomas, esse banco vai servir de parâmetro.
GU - A senhora também é pró-reitora de Pesquisa da USP, que tem, entre outras atribuições, a função de pressionar o governo para agilizar as importações e propor uma lei de incentivo à pesquisa. Na sua opinião, o que mais falta ao pesquisador brasileiro para fazer pesquisas de Primeiro Mundo?
MZ – 
O Brasil melhorou muito na questão do financiamento à pesquisa, mas os pesquisadores têm dificuldades enormes com relação à burocracia. Um exemplo é quando o cientista vai apresentar um projeto de pesquisa: ele tem que especificar tudo que vai precisar, de insumos a equipamentos, nos próximos três anos. Nos Estados Unidos, o pesquisador tem uma ideia e no dia seguinte tem tudo no laboratório para testá-la. No Brasil, levamos meses para começar. Pensando em pesquisa competitiva, estamos atrasados já na largada. O outro entrave é a importação. É muito difícil importar e, às vezes, eles emperram até a entrada de material de doação. Já falei até para o presidente Lula que material para pesquisa deveria ser selado para ser liberado imediatamente. Tivemos muitas reuniões a respeito, mas há pouco progresso nesse sentido.
GU - Os Estados Unidos e a Coreia do Sul, países que se destacam na ciência e tecnologia, mantêm um modelo de parceria entre dinheiro público, pesquisa científica e iniciativa privada. É possível existir algo do tipo no Brasil?
MZ -
 A Coreia e a China estão investindo muito em educação. Um professor do primário, nesses países, ganha um salário muito maior do que o de um professor universitário. Acho certíssimo. O aluno da universidade já pode se virar sozinho, a criança não. Outro diferencial é que pagam salários diferentes para os melhores pesquisadores. Quem produz mais, quem trabalha mais, tem que ganhar mais e ter incentivo. Hoje o maior desafio em Ciência e Tecnologia é facilitar a vida do cientista. No Brasil, o pesquisador leva mais tempo viabilizando um projeto do que, efetivamente, o executando.
GU - Na pró-reitoria, a senhora encampou o projeto de abrir os laboratórios da USP para alunos do ensino médio. Paralelo a isso, mantém uma coluna no site da revista Veja voltada ao público-leigo. Qual a importância de aproximar a ciência e as pesquisas de ponta dos estudantes e da população comum?
MZ O Programa de Pré-iniciação científica da USP vai fazer um ano. Nesse período, abrimos os laboratórios para 380 alunos do ensino médio. O maior objetivo do projeto é contaminá-los com o “vírus” da curiosidade. São jovens com 15 a 17 anos e o programa foi um sucesso e vários alunos declararam que a vivência na USP foi um divisor em suas vidas. Para 2010, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) já garantiu 400 bolsas para a continuação do trabalho. Uma frase do pensador chinês Confúcio diz: "Conte-me e eu vou esquecer, mostre-me e eu vou lembrar, envolva-me e eu vou entender." Quanto à revista Veja, no mundo inteiro existe um apelo para que o cientista converse com a população. A coluna ajuda a desmistificar a ciência e a ideia de que cientistas são malucos, de cabelo em pé. Nós somos pessoas comuns, eu até pinto as unhas. Graças à coluna, tenho recebido inúmeros e-mails de jovens que me dizem que querem se tornar cientistas. Isso me dá uma grande alegria.

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