sexta-feira, 25 de maio de 2012

Células-tronco em Chagas: as importantes lições de um estudo bem conduzido


Posted: 24 May 2012 08:39 PM PDT

Desde que começamos a pesquisar células-tronco a pressão que recebemos dos pacientes para iniciar ensaios clínicos em humanos tem sido gigantesca. E com isso, infelizmente, começam a proliferar clínicas oferecendo tratamentos “comerciais” não aprovados e não controlados, cobrando altos preços dos pacientes. Já repeti várias vezes. Isso é anti-ético. Enquanto for pesquisa não pode ser cobrado. A revista Lancet acaba de publicar um artigo denunciando esse procedimento em clínicas do Texas, nos Estados Unidos: “tratamentos comerciais com células-tronco”. O grande problema é que sem controles adequados, não é possivel concluir se o transplante de células-tronco traz algum benefício ao paciente. Isso pode ser muito bem ilustrado por uma pesquisa brasileira realizada com um grupo grande de pacientes chagásicos que acaba de ser publicada na prestigiosa revista Circulation. O estudo foi coordenado por Ricardo Ribeiro dos Santos (do Hospital San Rafael em Salvador) e Antonio Carlos Campos de Carvalho (do Instituto Nacional de Cardiologia, no Rio de Janeiro) e envolveu uma equipe de pesquisadores. Os resultados mostram que, infelizmente, nem sempre o que é observado em camundongos é reproduzido em seres humanos. Além disso, reforçam a importância das pesquisas clínicas com pacientes e controles em teste duplo-cego antes de se falar em tratamento. Para falar sobre isso entrevistei o Dr. Antonio Carlos Campos de Carvalho.

O senhor poderia explicar em uma linguagem simples o que é a doença de Chagas e qual é a sua incidência no Brasil?

A doença de Chagas é causada por um parasita, chamado Tripanosoma cruzi. Ela foi descrita por Carlos Chagas em 1909 e é uma doença bastante intrigante, pois quando se pode detectar o parasita circulando no sangue, durante a chamada fase aguda da doença, os sintomas em geral são o de uma gripe, sem maiores consequências. No entanto, 10-30 anos após o primeiro contato com o parasita, os pacientes podem apresentar sintomas digestivos e/ou cardíacos. Esses problemas acometem aproximadamente 30% dos pacientes infectados, e 70% permanecem sem sintomas. No Brasil calcula-se que haja 6 milhões de pessoas infectadas das quais cerca de 2 milhões podem desenvolver a forma cardíaca, a mais grave, da doença. A doença cardíaca é grave e não há cura. O tratamento é feito com fármacos (similar ao usado em insuficiência cardíaca de outras causas) e com a evolução da doença e agravamento da falência do coração em bombear o sangue, o transplante cardíaco termina sendo a única opção de tratamento.

Por que vocês acreditavam que pacientes chagásicos poderiam ser beneficiados com tratamento com células-tronco da medula óssea?

Em primeiro lugar é preciso esclarecer que nós não usamos células-tronco apenas. Em realidade nós usamos uma mistura de células extraídas da medula óssea do próprio paciente, que contem um porcentual reduzido de células-tronco (em torno de 2%). Antes de iniciar os ensaios clínicos em pacientes, nós testamos essas células em um modelo animal da doença de Chagas, em camundongos. Os resultados foram impressionantes; a terapia celular diminuiu a inflamação e a fibrose no coração dos animais cronicamente infectados com o parasita. Além disso, vimos um resultado surpreendente em termos da expressão dos genes cardíacos. Após a terapia celular conseguíamos restaurar a expressão de mais de 90% desses genes ao valor normal. Diante desses dados, embora não tivéssemos na época como avaliar a função cardíaca dos camundongos (através de ecocardiograma ou ressonância nuclear magnética) achamos que, em função da necessidade de buscar terapias alternativas para a doença em sua fase terminal, deveríamos testar a segurança da terapia em um grupo pequeno de pacientes chagásicos com grave comprometimento do coração. Esse trabalho inicial, que chamamos de ensaio clínico de segurança, foi todo realizado por um grupo de médicos baianos sob coordenação do Ricardo Ribeiro dos Santos. Eles foram pioneiros no desenvolvimento do método que depois usamos no ensaio para testar a eficácia da terapia a que você se refere acima (publicado na Circulation). O ensaio de segurança mostrou que se podia retirar as células da medula óssea dos pacientes, processá-las rapidamente no laboratório, e reinjetá-las no próprio paciente, sem trazer problemas. Além disso, esse estudo inicial com 20 pacientes mostrou que houve uma melhora na qualidade de vida e na função da bomba cardíaca neste pacientes, embora não houvesse um grupo controle para comparar.

Como foi conduzido o estudo que acaba de ser publicado na revista Circulation?

O estudo seguinte, o de avaliação de eficácia da terapia, tem um desenho bastante distinto do inicial. Tanto os pacientes quanto os médicos que os examinavam não sabiam se tinham recebido células ou apenas a solução em que as células eram diluídas. Denominados esses experimentos de estudo duplo-cego e placebo controlado. Os pacientes que iriam receber células ou placebo eram escolhidos por sorteio (um programa de computador fazia essa escolha), o que chamamos de randomização. Por fim o estudo envolveu vários centros distribuídos pelo Brasil. Ele teve assim todas as características necessárias para um estudo ideal de avaliação da eficácia de uma nova terapia; foi multicêntrico, randomizado, duplo-cego e placebo controlado.

Qual é a importância de se realizar estudos com controles em teste duplo-cego?

Esse é o cenário ideal, mas por vezes impossível de ser feito, por questões éticas. No caso do estudo de Chagas, para que o paciente pudesse ser incluído no estudo, ele não podia ter uma doença isquêmica do coração, e assim nós tínhamos de realizar um cateterismo em todos os pacientes para incluí-los no estudo. Como a injeção das células seria feita por cateterismo também, não seria ético submeter o paciente a um segundo cateterismo apenas para injetar placebo. Então durante esse primeiro cateterismo nós descartávamos a presença de doença coronariana e ao mesmo tempo injetávamos ou as células ou placebo dependendo do grupo para o qual o paciente era sorteado. Por ser duplo-cego, todos os pacientes foram submetidos a punção de medula óssea. Nós guardamos as células de todos para que pudessem ser injetadas caso tivesse sido comprovado melhora com a terapia celular ao final do estudo.

Achei muito interessante que os pacientes que tomaram placebo também melhoraram. Como se explica isso?

Esse é um achado comum em ensaios clínicos. O paciente que participa de um estudo clínico recebe uma atenção diferenciada da equipe que o trata. No caso do nosso estudo além da atenção diferenciada eles receberam também a medicação gratuitamente. Como os pacientes chagásicos são normalmente de camadas sócio-econômicas menos privilegiadas, isso também pode ter influenciado. Além disso, o número de remédios que um paciente desses toma por dia é bastante grande, e a adesão ao tratamento é as vezes sofrível. Com os pacientes de estudos clínicos esta adesão é, em geral, bem maior, já que o paciente se dispôs a participar de uma terapia experimental.

Se não houvesse o grupo controle-placebo a conclusão do estudo seria que o tratamento foi benéfico, concorda?

Se não houvesse um grupo controle, seria impossível falar sobre benefício do tratamento. Não há como avaliar a eficácia de uma terapia se não houver um grupo controle. Repare que o aumento na capacidade de bombeamento do coração no estudo inicial de segurança conduzido na Bahia e o encontrado nos pacientes tanto do grupo que recebeu células quanto do grupo que recebeu placebo no ensaio de eficácia, foi praticamente igual. Se no primeiro estudo, que não teve grupo controle, tivéssemos concluído que as células de medula óssea traziam benefício aos pacientes, teria sido um erro grosseiro. Por outro lado, se nenhum benefício tivesse sido constatado no estudo inicial de segurança, provavelmente não teríamos conduzido o estudo posterior de eficácia. Há muitas etapas a serem vencidas até que possamos concluir sobre a eficácia de uma terapia – começa-se com os modelos animais, passa-se então ao estudo de segurança em pacientes, depois vamos para o estudo de eficácia e por fim ao que chamamos de efetividade, quando a terapia é testada em pacientes não selecionados para o estudo clínico. Resultados negativos ou neutros em cada uma dessas fases, em geral, leva ao término do estudo.

Sabemos hoje que existem diferentes células-tronco com diferentes propriedades. A partir desses resultados o senhor acredita que vale a pena repetir um estudo semelhante com outro tipo de células-tronco?

Sem dúvida que vale. No momento estamos fazendo um estudo com células-tronco mesenquimais. Já mostramos benefícios dessas células em camundongos, mas como as de medula óssea também mostraram benefício nesses animais, mas não funcionaram nos pacientes, estamos testando as células mesenquimais em cães que tem a doença de Chagas (em colaboração com um grupo de pesquisa da Universidade Federal de Ouro Preto), antes de propor um novo estudo clínico nos pacientes. Os cães desenvolvem uma doença cardíaca bastante semelhante aos humanos quando infectados pelo Tripanosoma cruzi. Assim, se as células trouxerem um claro benefício aos cães chagásicos, nós certamente proporemos aos órgãos de controle éticos um novo ensaio clínico nos pacientes com cardiopatia chagásica. Se as células mesenquimais não mostrarem benefícios nos cães chagásicos, testaremos a seguir células-tronco cardíacas e células cardíacas derivadas de células pluripotentes. Há ainda muitas alternativas em termos de tipos de células, em termos de vias de injeção (nas coronárias, direto no coração, etc) e mesmo de quando durante a evolução da doença devemos injetar as células. O caminho a percorrer pode ser ainda muito longo, mas todos nós esperamos que no menor tempo possível possamos encontrar a célula ideal, a melhor via e a melhor fase da doença para realizar uma terapia celular que traga claros benefícios aos pacientes chagásicos. Isto requer pesquisadores dedicados, recursos financeiros e muita colaboração entre os grupos de pesquisa básica, pré-clínica e clínica envolvidos na busca de uma solução para essa terrível doença. A Rede Nacional de Terapia Celular (www.rntc.org.br) tem trabalhado intensamente para que tenhamos essas condições no Brasil.

Por Mayana Zatz

http://veja.abril.com.br/blog/genetica/sem-categoria/celulas-tronco-em-chagas-as-importantes-licoes-de-um-estudo-bem-conduzido/

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